Elliot Page e o binarismo naturalizado na mídia brasileira

Dandriel Henrique
4 min readDec 2, 2020

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Embora não só nela, claro! Na sociedade como um todo

Foto de Elliot Page
Foto do ator Elliot Page, astro de Juno (2007) e The Umbrella Academy (2019-)

Por volta das 14h (horário de Brasília) do dia 01 de dezembro de 2020, Elliot Page posta uma carta aberta em sua conta no Instagram (@elliotpage) se assumindo enquanto trans. Em pouco tempo o post viralizou, quatro horas após já havia milhões de curtidas e mais de 56 mil comentários!

Reprodução da carta aberta de Elliot Page, divulgada em seu Instagram (@elliotpage)

Notícias (mais menos acuradas) começaram então a circular pelo mundo anunciando essa “transformação” na vida do famoso ator. Quando os portais brasileiros começaram a reproduzir reportagens/postagens sobre, trouxeram uma informação que não está presente nos escritos do ator:

Imagem postada pelo perfil do Instagram da Mídia Ninja (@midianinja)

Elliot em nenhum momento de sua carta se assume enquanto um HOMEM trans, mas apenas enquanto uma pessoa trans, além de expressar que seus pronomes são agora MASCULINOS (He) e NEUTROS (They). Não tô aqui afirmando que ele seria, por exemplo, não-binário. Isso quem sabe é ele. Mas chamo atenção ao binarismo naturalizado na maior parte dos veículos lusófonos que estou vendo compartilharem essa notícia. A partir do anúncio do autoentendimento enquanto trans, mesmo sem menção a um rótulo binário, naturalizadamente esses que leram e escreveram tais reproduções, assim o fizeram.

Não que essa naturalização seja exclusiva da mídia. Há um reflexo do povo, assim como há um reflexo no povo. Tenhamos em mente que há um processo de retroalimentação desse binarismo, enraizado sob as nossas peles.

Vale destacar que trouxe o exemplo da publicação da Mídia Ninja por ser o primeiro grupo/portal/coletivo que vi reproduzindo essa notícia. Seja como for, foi recorrente a perpetuação do discurso de que Elliot Page teria se assumido enquanto uma homem trans. É importante, porém, destacar que, horas depois, imagino que pelo menos em parte devido aos apontamentos de parte do público, no texto que acompanha essa imagem foi feita uma edição onde se adicionou uma retificação:

Reprodução do texto que acompanha a imagem exposta anteriormente

Comecei a escrever esse texto aqui por volta das 16h e pouco. Quatro horas, mais ou menos, após o anúncio de Page. Agora já passaram das 22h do mesmo dia (01/12/2020). Se às 16h era quase universal, mesmo em portais mais “desconstruídos”, o anúncio do ator ter se assumido “homem trans”, olhando agora a noite vi diferentes portais alterarem suas chamadas, usualmente para algo como, “revela/anuncia que é transgênero”, sem mencionar “homem”. Admito que essas alterações me surpreenderam.

Dito tudo isso, estou lendo, observando e escrevendo conforme esse conjunto de fatos estão tomando forma. Se tem algo que a graduação em história me ensinou é a limitação dessa visão por demais próxima. O melhor entendimento exige algum afastamento. Reconheço minhas limitações, mas opto por nesse texto me permitir expor esses incômodos.

Infelizmente, não raro porém foi/é a manutenção da menção ao antigo nome do ator. Se antes eu construía uma crítica ao enraizamento de um binarismo, aqui temos algo mais abrangente que afeta todo o povo trans (binário ou não). Penso eu que a perpetuação da publicização dos nomes antigos (por vezes chamados de “nomes mortos”) das pessoas trans é dos exemplos mais frequentes da transfobia naturalizada nos nossos meios de comunicação. Há violência nesse ato. Não como um soco ou outra forma de agressão física, mas há. Só a empatia permite que isso seja entendido.

Um último ponto que reparei, embora ainda tenha muito a refletir mais sobre, é o fato de muitos portais terem optado por traduzir transgender, para transexual invés de, em sua tradução literal, transgênero. Transgênero e transexual, embora no passado tenham tido significados distintos (não raramente perpetuados no senso comum), na atualidade significam a mesma coisa e podem ser atribuídos, a princípio, aos mesmos indivíduos. Ainda assim, a escolha de palavras é sempre algo a se notar. Seja como for, pararei por aqui… Se fosse ainda mais longe nesse ponto, iria acabar me valendo de muitos achismos. E, convenhamos, disso a internet já está cheia.

Por hora vamos seguindo e refletindo. Fico contente por diferentes portais/sites/perfis terem, em alguma medida, se retificado, e descontente pela recorrente perpetuação do nome antigo de uma pessoa trans.

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Dandriel Henrique

Granduando em História pela UFRJ. Não-binário (especificamente, Agênero). Por hora sigo fluindo ou, ao menos, assim tentando.